19 dezembro 2012

Os Sentidos do Lulismo, 2ª parte

Há no esforço de reflexão de André Singer [sobre o Lulismo] três questões de método decisivas.

Três conquistas de método e uma falta
Juarez Guimarães * cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

Há no esforço de reflexão de André Singer três questões de método decisivas.
Em primeiro lugar, a opção por combinar as tradições de estudo eleitorais – fortemente quantitativas e herdeiras principalmente da bibliografia anglo-saxã de estudos da ciência política – com um viés classista de interpretação que dialoga com os clássicos do marxismo. Não se trata no livro de um empreendimento eclético: as grandes tendências eleitorais de voto no Brasil são interpretadas conceitualmente através do movimento ascensional do chamado subproletariado, pessoas que vivem do seu trabalho mas, pela formação social brasileira, não compõem organicamente o proletariado industrial ou do setor de serviços de forma estável.
Ora, a identificação da importância concedida a esse setor por dois clássicos de interpretação do Brasil – Caio Prado Júnior e Celso Furtado – permite ao autor avaliar a dimensão histórica do fenômeno que estamos vivendo. Mais do que uma tendência eleitoral, mais do que um fato acontecido na dinâmica da disputa partidária, estamos diante de um “movimento nas estruturas”, do qual “a polarização na sociedade é sintoma”.
Na ciência política acadêmica brasileira, em geral os estudos eleitorais são “desfiliados” das tradições interpretativas dos clássicos do Brasil. Fruto da autonomia departamental  da disciplina e sua ambição de cientificização, os estudos de interpretação eleitoral desprezam na maioria das vezes a rica arca de acúmulos de estudos interpretativos do Brasil. André Singer vai em direção contrária: o conceito de “realinhamento eleitoral”, definido como “mudanças de clivagens fundamentais do eleitorado, que definem um ciclo político longo”, procura em seu argumento exatamente amarrar tendências de voto às dinâmicas históricas de classe.

Em segundo lugar, é um grande mérito desse trabalho dialogar, acolhendo inclusive parte das razões, com intelectuais que, a partir de um referente marxista ou de esquerda, denunciam a experiência do “lulismo”. No campo hoje fraturadíssimo do marxismo brasileiro, essa opção por escutar e acolher criticamente as vozes que vêm de fora da cultura do PT – como a voz rouca e nordestina de Francisco de Oliveira, aquela outra historicamente adversária ao PT de Luiz Werneck Vianna, a de Leda Paulani, além de muitas outras – deve ser defendida com ênfase. Se discordamos dos juízos às vezes até insultantes contidos nessas razões adversárias e autointituladas de esquerda, não é o caso de desqualificá-las de partida.
O pensamento ensimesmado sempre se empobrece. O pluralismo das vozes, inclusive à esquerda e para além dela, tem um valor heurístico. Se o lugar social de quem diz é importante, o lugar político de quem critica também o é: se apenas acolhemos as razões de quem defende o PT e nossas experiências de governo, o risco que se corre é encerrar nossas razões em uma lógica da autojustificação. Alternativas, limites, erros podem ser descartados em nome da autodefesa de um partido submetido a uma guerra permanente de desgastes pelas grandes empresas de mídia.
É uma terceira conquista do livro Os Sentidos do Lulismo pensar na escala das longas temporalidades. Atravessamos mais claramente no Brasil desde 2002 uma conjuntura crítica, de alta dramaticidade histórica e violentíssima tensão política. Conjunturas críticas são aquelas que definem os paradigmas de largas temporalidades, interrompem continuidades e abrem novas perspectivas: não se pode pensá-las a partir de análises de conjuntura, estrito senso.
De certo modo, as experiências recentes de transformação na América Latina têm estado às voltas com seu passado: o bolivarismo, o retorno atualizado das tradições do peronismo, a ascensão das culturas indígenas na Bolívia, o experimento uruguaio da Frente Ampla. No Brasil, também não é diferente: o passado represado está vindo à tona, como, por exemplo, as políticas de reparação das heranças escravocratas. Pensar através das largas temporalidades é fugir dos erros do impressionismo, o maior risco de quem se mete a compreender um processo em curso e na vertigem dele. 
Talvez o grande limite da reflexão de alta complexidade empreendida por André Singer é não conferir à questão democrática – mais além das tendências de voto – uma centralidade para o entendimento da evolução recente do Brasil. A sociedade brasileira está vivendo fortes movimentos, a correlação de forças entre os partidos também, igualmente a economia, mas em que medida o poder do Estado está sendo transformado? Em que medida, onde e como o Estado brasileiro tem se alterado?
A correlação de forças para mudar leis fundamentais, para reorientar estruturalmente gastos orçamentários, para realizar alterações profundas no sistema tributário ou no sistema de propriedade rural, para permitir a democratização das relações de trabalho, e assim por diante, interfere no ritmo possível das mudanças. A concentração e a propriedade dos meios de comunicação de massa interferem fortemente na formação das legitimidades e na formação da opinião pública. As regras eleitorais e de organização de partidos, bem como o modo de financiamento, interferem diretamente nas dinâmicas partidárias.
Se não há acúmulo suficiente para mudar leis fundamentais, como fazer, o que fazer, se o que se quer é o caminho legitimado e democrático das mudanças? Como o chamado fenômeno do lulismo se relaciona com uma larga conjuntura na qual se governa adversativamente em meio a um Estado profundamente marcado por heranças conservadoras e burguesas? Como superar os impasses que daí resultam?


Fonte: Teoria e Debate

Leia a 3a. parte do artigo.

 
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